MARTINHO LUTERO
Ontem e Hoje
Caminhamos a passos largos para a comemoração do 5º Centenário da Reforma Luterana (1517-2017), levada a cabo pelo Dr. Martinho Lutero, de bendita memória. Figura pouco conhecida em Portugal, geralmente mal compreendida, pela ausência de traduções das suas obras no nosso país, Martinho Lutero é aqui motivo de reflexão, como contributo para o conhecimento deste personagem histórico, marcante na história da Europa e da Igreja Cristã.
Quando em 31 de Outubro de 1517 Martinho Lutero afixou as 95 Teses para o «debate sobre o esclarecimento do valor das indulgências», ninguém, com certeza, teria arriscado as consequências de tal acto, na Igreja e na História. E isto por uma razão simples: é que o acto de afixar publicamente um documento para debate público era, então, um acto vulgar para professores universitários, que pretendessem debater teses do seu interesse. Martinho Lutero era, nessa ocasião, doutorado em Teologia e professor na jovem Universidade de Wittenberg, fundada pelo Eleitor Frederico da Saxónia.
Esse acto, hoje longínquo, e quantas vezes (ainda) mal compreendido, esteve no cerne do vasto movimento que a História veio a conhecer como «Reforma», ou mais genérica e equivocamente «Reforma Protestante». Sublinhe-se, de passagem, que esta designação deveria apenas ser atribuída, em abono da verdade, à Reforma Luterana, pois o "protesto" foi o de vários príncipes alemães luteranos, em 1529 na II Dieta de Speier, contra a falta de liberdade religiosa de que eram alvo pelo édito de Worms.
O que levou àquele momento, perdido na noite da transição da época medieval para a moderna? Quem era afinal esse (ainda) obscuro monge/professor de teologia, que assim viria a estar na génese de uma das mais profundas crises da história europeia?
I - INFÂNCIA E ESTUDOS
Lutero nasceu em Eisleben, na Saxónia, a 10 de Novembro de 1483, tomando o nome de S. Martinho no dia seguinte, nas águas baptismais. Os seus pais, Hans e Margarethe, eram gente de origem rural, origem que, aliás, Lutero nunca renegaria e que lhe moldaria o carácter franco e até agressivo, que o caracterizou.
O pai foi subindo na escala social e financeira, o que permitiu a Lutero a frequência dos estudos existentes então. Estudou em Magdeburgo, depois em Eisenach, seguindo, em 1501, para Erfurt, onde se matriculou na Universidade. Aí obteve o grau de Mestre em Artes em 1505, iniciando estudos de Direito.
II - A CRISE RELIGIOSA
E é neste ano de 1505 que sobrevém a Lutero a famosa crise religiosa que lhe mudou o rumo da vida.
Numa noite, a 2 de Julho, enquanto se dirigia para Erfurt, desabou na floresta uma violenta tempestade, quase sendo fulminado por um raio. Lutero recorre no desespero a Santa Ana, prometendo que iria para monge, se fosse salvo dessa tormenta.
Assim aconteceu e, 15 dias depois, ingressou no mosteiro de Santo Agostinho em Erfurt, o mais rigoroso de todos os que havia na cidade.
III – O MOSTEIRO E A «JUSTITIA DEI»
A presença de Lutero no mosteiro marcou decisivamente a trajectória religiosa do Reformador.
Seguindo os estudos de Teologia, foi ordenado sacerdote em 1507, foi a Roma em 1510/11, já bacharel em Escritura, e em 1512 doutorou-se em Teologia, passando a leccionar vários cursos sobre a Bíblia na Universidade de Wittenberg.
A carreira era brilhante, aos 29 anos, tendo um futuro promissor na hierarquia da ordem agostiniana, na Universidade e na Igreja Católica. No entanto, a instabilidade religiosa perseguia-o. Apesar de ser um rigoroso cumpridor das vigílias, das orações, dos rigores da Ordem, Lutero continuava a interrogar-se sobre como poderia «obter um Deus gracioso?» Como aplacar a ira de Deus sobre o pecador, que ele se considerava, apesar de ser um austero cumpridor das leis da Igreja? E foi exactamente na Bíblia, que ele ensinava, que Lutero encontrou a resposta na célebre «experiência da torre». Numa noite em que meditava sobre Romanos 1:17 («O justo viverá pela fé»), Lutero sentiu a resposta às suas angústias espirituais abrir-se sobre ele:
«Enquanto meditava dia e noite e examinava o sentido destas palavras - o justo viverá pela fé - comecei a compreender que a justiça de Deus significa aqui a justiça que Deus oferece e pela qual o justo vive, se tem fé. O sentido da frase é, pois, o seguinte: O Evangelho revela-nos a justiça de Deus, mas a justiça passiva, pela qual Deus, na sua misericórdia, nos justifica por intermédio da fé. (...) Senti-me imediatamente renascer e pareceu-me transpor as portas escancaradas do próprio Paraíso!»
IV – DAS INDULGÊNCIAS À RUPTURA
O que se passou de seguida é já mais conhecido. Na sequência de uma descuidada e, por vezes, grosseira venda de indulgências, por parte do dominicano João Tetzel, Lutero, indignado com tal «venda da salvação», decide elaborar, 95 Teses contra as Indulgências, documento que, como era hábito então, afixou num lugar público, a fim de promover um debate teológico sobre a matéria.
O que se seguiu é também do conhecimento normal dos manuais de história.
O papa de Roma reage ao documento, enviando sucessivos mediadores a Lutero, a fim de que ele se retractasse. Não o conseguindo, o papa pressiona o Imperador da Alemanha, Carlos V, a convocar o monge para a Dieta de Worms, a fim de resolver o problema que entretanto alastrara a todo o império.
No princípio desse ano Lutero seria, aliás, excomungado pelo papa Leão X.
Na dieta de Worms, realizada em Abril de 1521, Lutero é instado a retractar-se das doutrinas que ensinava. Num grito de consciência, que ecoaria pela história, responde:
«A menos que seja convencido de erro pelas Escrituras ou por raciocínio claro, pois a minha consciência está presa à Palavra de Deus, não posso nem quero retractar-me, porque agir contra a própria consciência não é, nem verdadeiro, nem honesto. Aqui estou! De outra maneira, não posso! Que Deus me ajude! Amém!»
Na sequência desta Dieta e desta atitude, Carlos V decretava a proscrição de Lutero e este, até ao final da vida, dedicar-se-ia à redacção de milhares de páginas de livros, manifestos, cartas, catecismos, comentários bíblicos, etc., etc.
Morreu a 18 de Fevereiro de 1546, na presença de filhos e amigos, aos quais declarou que morria confiando em Jesus Cristo e reafirmando a doutrina que ensinara ao longo da vida. Um papel, possivelmente o último escrito por Lutero, no leito de morte, dizia: «Não passamos de pobres pedintes. Essa é a verdade».
V – ONTEM E HOJE
O LEGADO DE LUTERO
Cinco séculos depois, com a poeira da História a assentar, e as polémicas, ódios e extremismos, definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética de todos os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome de Martinho Lutero?
- Para muitos nada;
- Para outros tantos, um mero revoltado, um rebelde, que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente;
- Para outros ainda, uma figura histórica, de assinalável grandeza, um dos construtores do mundo moderno;
E para os luteranos?
Naturalmente que a herança de Lutero é imensa:
- Foi o pai do alemão moderno;
- Foi o autor de uma vasta obra teológica, que hoje abarca cerca de cem volumes;
- Dignificou o casamento, dando ele próprio o exemplo, ao casar em 1525 com a ex-freira Catarina de Bora, de quem teve seis filhos.
- Compôs dezenas de hinos, reestruturando o canto congregacional na Igreja.
- Reafirmou o sacerdócio universal de todos os crentes e introduziu o vernáculo como língua litúrgica.
- Inspirou grandes mestres da música, como Bach e Mendelssohn.
E tudo isto, sem dúvida foi entrando no património das igrejas após Lutero.
Mas Martinho Lutero, sendo tudo isto, é muito mais do que isto. Lutero coloca-se naquela posição de homem de Deus, profético, que no exacto tempo de Deus proclamou a Sua palavra salvadora. É esta a herança de Lutero que o faz enfileirar na sequência dos grandes Pais da Igreja Cristã, desde os tempos de Santo Agostinho. E ainda hoje essa voz profética de Lutero se faz ouvir, como interpelação a todos os cristãos para uma fé mais profunda sustentada na Palavra de Deus, a Bíblia Sagrada. Essencialmente, no fundo, seguindo a máxima do próprio Dr. Martinho Lutero, de bendita memória: "Deixai Deus ser Deus".
Rev. Artur Villares
Vila Nova de Gaia, Dia da Reforma, 31 de Outubro de 2005